O frouxo

O marido chega em casa cabisbaixo, olhos rasos, desiludido da vida. Na cozinha, encontra a mulher de quatro limpando o forno do fogão. Com os olhos rodeia toda a casa que é pequena, mas muito confortável.
— Sílvia, precisamos conversar seriamente.
— Não vê que agora estou ocupada?
— tudo bem, te espero na sala, é uma conversa séria. Tornou a repetir.
Epitáfio foi para a sala, contava os dedos, dava soco no ar para passar o tempo. Silvia aparece e com o rosto cheio de fuligens não demonstra nenhuma preocupação.
— Fala logo, ainda tenho que voltar para a limpeza.
— É sobre nosso casamento...
Epitáfio deixa no silêncio uma incógnita que lhe corroia as entranhas e num sôfrego completa.
— Está uma merda! Não exatamente nesses termos, vivemos como duas estátuas dentro desta casa. Não há mais aquele fogo que antes nos queimava por dentro. Percebi que você já perdeu o tesão por mim. Na cama apenas cumprimos com o dever carnal.
Silvia não se flagelou com aquelas palavras, tão pouco se importou com a gravidade do problema, pelo contrário, ali encontrou uma brecha para fulminar Epitáfio e lhe falar o que há tempos estava preso na garganta.
— Sabe qual é o problema Epitáfio? É você! Sempre foi um banana dentro desta casa, um ‘Zé roela’ que o único trabalho que se presta é ficar sentado nesse sofá caçando o saco e assistindo TV. Tudo você espera por mim. Tudo! E mais, fique você sabendo que eu perdi o tesão por ti porque você é um frouxo até na cama.
— Por favor, acalme-se querida. Não era para tanto, olha, a culpa é de nós dois. Você que deixou chegar nessa situação, sempre me servindo com tal zelo como se cria um filho. Um filho!
— Ah sim, eu também sou culpada. Melhor, a culpa é toda minha, só minha, pois me casei com um frouxo!
— Olhe, não fale assim, senão eu...
— Vai bate, você não tem coragem. Eu sei que não tem porque é um frouxo!
Epitáfio fechou os punhos. Se conteve antes que acontecesse o pior, virou as costas e foi para o quarto. Nunca encostou um dedo na mulher, não seria numa rusga desnecessária que haveria de batê-la. Até o momento Silvia nunca dera momento para extrema atitude, era uma mulher calma e alegre. Epitáfio cansado daquela vida monótona, coloca suas roupas na mala e sai porta afora, não quis olhar para trás, Silvia estava aos prantos e isso lhe cortara o coração.
— Vai desgraçado! Eu sempre morei sozinha nesta casa, não vou sentir tua falta.
Dois meses em um hotel de quinta. De longe sentia o cheiro de mofo das mobílias. Emagreceu cinco quilos e algumas gramas, não conseguia mais dormir durante a noite. Tinha pesadelos, acordava assustado e perdia o sono. Sentia falta de casa, da mulher e daquela vida sem compromisso. Não se conteve, pegou o telefone e ligou.
— Amor, é o Epitáfio. Preciso muito falar contigo, é coisa séria.
— Já quer voltar?
— Posso? A vida longe de ti é uma...
— Merda?
— Viu, você decifra até meus pensamentos.
— Vem amanhã depois das sete. Precisamos ter uma conversa antes, mas sem as malas, ouviu?
— Tudo bem, irei depois das sete e sem as malas.
Noutro dia, no horário combinado a campainha toca. Era Epitáfio, sem jeito e acuado feito cão sem dono. Silvia abre a porta, o olha com um desprezo aterrador.
— Entra. Disse com uma voz seca, sem emoção alguma.
— Amor...
— Entra. Repetiu.
— Eu pensei que...
— Não pense, ainda não o perdoei. Só voltará com uma única condição.
— Que condição seria esta?
— Me bate com todas as suas forças. Virou o rosto para ele com a intenção de ali levar o golpe.
— Não, isso não! Está ficando louca? Disse Epitáfio aturdido com aquele pedido sem nexo da mulher.
— Louca? Loucura maior foi casar contigo. Um frouxo incapaz de bater em uma mulher. Pouco antes de virmos para cá você vivia debaixo da saia da mamãe. Um frouxo!
— Não sou frouxo!
— Um frouxo sim. Um banana e marica de uma figa!
— Não fale assim. Não sou nada disso.
— É um...
Plaft! Epitáfio desfere um golpe certeiro no rosto de Silvia. As marcas dos dedos ficam cravadas em sua face. Descontou naquele tapa anos e anos de uma vontade reprimida. Não se conteve, deu-lhe outro e mais outro com uma fúria selvagem e sanguinária. Silvia desaba num choro premeditado. A dor daquele tapa lhe trouxe a lembrança de seu pai, irascivo e másculo. Em meio as lágrimas, se ajoelha aos pés de Epitáfio, esboça uma felicidade única e diz:
— Você é homem, Epitáfio! Você é meu homem. O meu homem.

1 comentários:

MeninaLuz 23 de agosto de 2016 às 09:58  

rs muito bom....

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.