Parábola das três passagens

Um viajor movido por sua imensa curiosidade e forte vontade de conhecer o novo, se aventura em uma floresta densa em busca de um tesouro sagrado há muito tempo escondido da civilização. Adentrando ainda mais na mata, passando por rios e montanhas, percebe o viajor que não sabia mais o caminho da casa. Seu único guia era um mapa antigo que apontava o local exato do suposto tesouro. Quando as forças já estavam se esgotando, cansado e sem rumo, e olhos lupinos o seguiam incessante, o homem se ajoelha aos pés de uma velha árvore e pede a Deus a luz que o levasse ao tesouro. Ao terminar sua oração, guiado por um anjo amigo ele caminha poucos metros e encontra entre os arbustos uma fenda que o leva até o interior de uma imensa caverna. Tal qual um santuário divino, tudo era coberto por pedras brilhantes, mas que não tinha nenhum valor no comércio dos homens da terra. Uma fina camada de água límpida corria suavemente em direção oposta. O viajor ficou fascinado com tanta beleza e perfeição. Mais à frente ante um paredão de mármore havia três passagens que o levara a uma escolha. A voz doce de seu anjo amigo sussurrou baixinho o que havia em cada passagem e que o homem tinha total liberdade em sua escolha, porém, alertou o anjo sem o repreender em algum momento, que a escolha devia ser com responsabilidade e não culparia a providência divina pelo desfecho das ações. Na primeira passagem, disse o anjo, eis toda a riqueza da terra, ouro e pedras preciosas para as tuas necessidades. Na segunda, a plena felicidade para que possas viver em harmonia. Na terceira, o puro amor que precisas para habitares a casa do Pai com mais segurança.

Num breve momento de hesitação o viajor medita e faz sua escolha, pensa ele, com toda a riqueza desta terra posso comprar o amor e assim conquistar a felicidade. Com argumentos precisos para justificar sua decisão, pensava ele, não haveria na terra bem maior que a riqueza abundante. Hei de dar alimento aos que sentem fome e abrigo aos que sentem frio. Serei um homem abençoado, pois estarei também partilhando com meus pobres irmãos. Ao sair do santuário divino para retornar à casa dos homens, o viajor leva consigo uma pequena barra de ouro e com ela a sua fortuna começou a brotar incessantemente. Nos negócios o dinheiro multiplicava dias após dias, no jogo, a sorte era sua companheira inseparável. Quando já havia ele conquistado a riqueza imensurável, quis ele mais e mais. Não dormia à noite com medo de ser saqueado. Contratou milhares de empregados para administrar o dinheiro junto a ele, vivia sempre desconfiado. As mulheres que ao seu lado estavam, se deleitavam com os bens materiais e não o amavam sinceramente. Não partilhou um centavo com seus irmãos, pois dizia ele que tudo foi conquistado com trabalho e suor, e cada qual que conquistasse para si o ouro desejado. O egoísmo arraigou no coração daquele homem de tal forma que foi ameaçado de morte muitas vezes, e então, a cobiça de outros homens espreitava sua riqueza dias após dias.

Certo dia, num breve descuido de seus seguranças, o homem rico foi almejado pelos saqueadores e lhe furaram o olho esquerdo. Nem mesmo os melhores cirurgiões contratados conseguiram restaurar a visão. À noite, em seu pequeno calabouço dourado e envolto de uma blindagem espessa, medita o homem quanto a sua riqueza e pensou ele que não tinha responsabilidade suficiente para administrar tanta coisa, nisto, lembrou-se das passagens e quis voltar e tentar novamente. Uma fagulha de esperança lhe toma o espírito e ouve novamente a voz de seu anjo amigo que havia se distanciado devido as circunstâncias. Vá e faças o que é certo, disse a voz bondosa. Todos erram, e todos têm o direito de voltar e restituir os erros para assim caminhar com mais segurança à casa do Pai. Ouvindo isto, lembrou o viajor que havia ainda naquela caverna duas passagens, e desta vez faria a escolha certa, pois merecia muito ser feliz após levar uma vida miserável mesmo coberto de ouro. Porém, pensou com astúcia, devo eu escolher a passagem que leva ao amor e assim terei também a felicidade. E assim fez, retornou ao santuário e diante das passagens escolheu com toda segurança aquilo que o tornaria feliz, o amor.

Ao voltar, desprovido de todos os bens materiais, quis ele construir uma pequena casa sem muito luxo e ali ter uma família. Casou com uma bela jovem e os dois tiveram filhos. Ele a amava intensamente, mas um amor que muitas vezes se confundia com uma paixão doentia e aos poucos o ciúme minava o relacionamento. À medida que cresciam, os filhos ficavam mais e mais rebeldes, como se ali estivessem alguns inimigos que o viajor arruinou em outros tempos. Alguns pedintes que chegavam até a sua porta eram escorraçados sem piedade, e dizia o homem com o coração pétreo, um dia eu escolhi amar muito para ser feliz, mas só me deparo com gente desgraçada que me bate à porta para pedir o que não tenho. O meu amor é todo direcionado a minha mulher e minha família, mas são eles os ingratos que me arruínam todos os dias. Como poderei amar sinceramente quando nesta maldita vida só tenho decepções?

O tempo passara devagar e as circunstâncias o levaram a pensar que amor é pura ilusão. Não quis ele ao menos olhar no espelho, pois sabia que o tempo lhe deu mordazes golpes e sua juventude fora lhe tirada. Quem haverá de amar a carne decrépita, pensava ele. Olhar para dentro de si e buscar a juventude perdida era mergulhar em remorsos e angústias. A mulher que tanto amara, partiu com os filhos e os amigos se foram todos. Estava fraco e sem vida e não desfrutou um minuto sequer da felicidade que tanto almejava. Nisto, uma outra fagulha de luz penetra sua mente e num ato lembrou que no santuário perdido ainda havia uma passagem e era justamente aquela que ele buscou a vida toda. Mas suas forças haviam se esvaído e seu olho direito já não enxergava também. Cego e sem forças, o viajor rastejou até a floresta. Não lembrava mais do caminho e ali ficou estirado por dias até entrar num sono profundo. Quando levantou-se, leve e rejuvenescido, encontrou em sua frente aquele anjo que era seu amigo guardião. O amigo de luz o olhara complacente, demonstrando tristeza por ver que o viajor não cumpriu sua tarefa com responsabilidade. Mesmo assim, quis o anjo dar-lhe outra chance. Levou o viajor novamente no santuário e ali lhe mostrou duas passagens. A primeira, dizia o amigo de luz, está a renovação. Todos que a escolhem tem o direito de retornar à carne, e sabem eles que será uma escolha de provas, porém se passarem com esmero e resignação, depurar-se-ão e assim mais perto da casa do Pai chegará os viajores. A segunda passagem está a felicidade, é o caminho mais curto e sem espinhos, porém, a escolha deve ser com responsabilidade.

Sem titubear, seguiu o espírito livre para a passagem que tanto buscou, o anjo amigo nada lhe falou e apenas lhe desejou boa sorte e disse amavelmente que as consequências de seus atos são os frutos de suas escolhas. Lhe abençoou e seguiu para o alto com olhar de tristeza, mas ciente que sua tarefa foi cumprida. O viajor ao adentrar na passagem e vendo assim a felicidade diante de seus olhos, vibrantes e recuperados da cegueira teve um susto quando a enorme porta se fechou rapidamente atrás de si. Quando a neblina se desfez e sua visão enxergou tudo ao seu redor, só o que ele via era dor e sofrimento, homens e mulheres rastejavam-se na lama e se perseguiam mutuamente. Mais adiante pessoas andavam de cabeça baixa sem rumo. Outros eram açoitados e escravizados mentalmente.

A chuva fina que caia naquele mundo sombrio era salgada como o mar e a fome castigava os que ali habitavam. Redemoinhos fustigavam rochedos e neles almas se retorciam sentindo a dor intermitente, e a carne, dilacerada se reconstituía todos os dias para que o sofrimento não cessasse.

Quando o viajor caiu em si e se deparou com um mundo de tristeza e não aquele de felicidade eterna ao qual tanto sonhou, se ajoelhou e indagou o porquê de estar ali. Mentalmente e muito distante a voz de seu anjo amigo lhe soou baixinho:

“Sois responsável pelos caminhos que escolhe e palmilha. Deus lhe deu o coração para vos servis de bússola e assim chegar até Ele com segurança. Ninguém entra na casa do Pai sem depuração e conhecimento. Fôreis egoísta quando não partilhou a tua riqueza. Fôreis orgulhoso quando não amou com todo desprendimento. Serdes realmente feliz quando aprender viver com o espírito e não com o peso da carne. Eis a primeira lição que deveis levar convosco em todos os recomeços. A tua melhor escola serdes esta que habitais neste momento. Mesmo no sofrimento praticais o bem com resignação e vindes a luz em vossa direção.”

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.