O beijo na estação 69

Acordo cedo. Bem cedo. Antes mesmo de o galo acordar a vizinhança. Não existem mais galos. Nem pássaros. Acordamos com o ronco dos motores. Com os tiros estilhaçados. Com o grunhido dos porcos. Desses bichos que há tempos perderam o domínio de si mesmos. Bichos civilizados. Ao mesmo tempo selvagens. Perigosos. Desligo o despertador. O tilintar do tempo não para. Lavo o rosto. Enxugo. Vejo o que restou de mim no reflexo do espelho. Quase nada. Olhos fundos. Dentes amarelos. Enormes entradas nas laterais. Barba por fazer. Enfim. A mão pesada do tempo em minha face. Desço a escadaria. Antiga. Decrépita. Lá em baixo a porta de minha cela. Aço reforçado. Uma muralha. Lá fora há monstros ferozes. Loucos. Sanguinários. Covardes. Boçais. De praxe paro na primeira esquina. Sento no banco desconfortável. Não percebo mais a imundície. Peço o meu café. Ali mesmo. Rente à rua. Passam os ratos. Os homens. Os bólidos potentes. Fumaça. Enxofre. Cheiro de mijo. Fezes humanas. Tudo se mistura. É alucinógeno. Embrulha o estômago. Outros perdem o apetite. Frescos. Levanto o dedo. Todos os dias o mesmo gesto. O mesmo balcão engordurado. Os mesmos risos enfadonhos. A mesma atendente. Olhar esmaecido. Peço o café. A rotina é uma desgraça. Ela já sabe o meu gosto. Um pingado à moda gaúcha. Quente. Fervendo. Traiçoeiro. Toda rotina tem suas particularidades. Mínimas. Incomuns. Olho para os peitos dela com lascívia. Chegam perto. Bem perto. O fogo do desejo é brutal. Queima por dentro. Neste dia quis ver os detalhes. Ir mais além do simples enxergar. Dominar os sentidos e ir além da fumaça. Do cheiro podre das ruas. Da nicotina tragada. No café havia uma mosca. Estava ali. Boiando. Me insultando. Me ridicularizando perante o monte de bosta ao meu redor. Eu a vi e a engoli assim mesmo. Com a consciência limpa. Desnuda de qualquer nojo ou preconceito. Já estava contaminado. Dominado por completo. Aquelas vozes. Risos secos. Todo o tipo de sugestão. Olhei para o lado e dei um sorriso irônico. Ninguém notou a maldade. Ninguém nota. Estavam compenetrados com suas vibrações horrorosas. Malignas. Eles só enxergam o próprio rabo e depois morrem. E voltam. Num círculo vicioso. Demorado. Exaustivo. Plasmados com suas dívidas. Do outro lado da rua havia outras lanchonetes. Outras atendentes. Peitos murchos. Ensebados. Moscas engolidas todos os dias. Tragadas. Esmagadas. Bebi meu café enquanto estava quente. Depois que esfria o ódio é mais severo. Inquisidor. Tudo conspira contra quando estamos à deriva. Pobres insetos. Ainda do outro lado dois jovens chamavam a atenção. Eram tenros. De carne e olhares macios. Dissimulados. Uns e outros ônibus passavam. Devagar para não atropelar ninguém. Buzinavam. Os jovens pareciam incautos. Distantes. Doces. Imaculados. Os minutos passavam e a cena me instigava. Um voyeurismo súbito sobe à cabeça. A estação estava cheia. Centenas de corpos se esbarrando. Acotovelando-se. Com seus fantasmas. Trocando energias. Os jovens ali. Entre eles. Tão sós. Cercados apenas pelas paredes do firmamento. Acariciavam-se. Tão lindo. Tão amável. Tão jovial. Num instante meu pau enrijeceu. Eles continuavam. Com mais sôfrego. Sensualidade. Rispidez. Numa paixão ludibriosa o sangue escorria dos lábios. Acumulava na glande. No clitóris. No bico dos seios. Um torpor intenso tomava conta deles. As roupas caiam suaves no chão. Formou o leito. Desconfortável. Pétreo. Sem paredes. Ela se deitou. Consentiu. O chamou para os braços. Ele entendeu o chamado num simples piscar de olhos. Foi sublime. Telepático. Irônico. Exatamente como vieram ao mundo estavam ali. Enchendo os pulmões Num fôlego. Nus. Loucos. Alucinados. De repente a penetração. O gemido aturdido da fêmea. Lábios mordiscados. Incólumes. O balanço das ancas. Entre a boceta e o pau do garoto escorria o suor. Ali mesmo. No chão da estação. Alguns paravam para ver a cena. Uma peça ao ar livre. Impudica. Outros viravam a face. Passavam direto. Faziam o sinal da cruz. Num ato covarde. Sórdido. Melindroso. Hipócrita. Isso mesmo. Pensava. A vida é pra foder. Que merda é esta de moralismo. Todos fazem. Ali. Acolá. E repetem. Todos os dias. Ninfomaníacos velados. Estúpidos. De repente o silêncio. Carícias compassadas. O gozo. Depois da ejaculação precoce o abraço forte e um beijo demorado. Angélico. Doce. Inocente. Encantador. E aquele foi o beijo mais lindo que assisti na estação 69.

1 comentários:

Pablo Treuffar 13 de setembro de 2010 às 07:43  

Parabéns. não me lembro de ficar tão fascinado com um texto.

Já havia comentado no Orkut, mas faço questão de repetir aqui.

De tirar o folego, adorei!

Seu maravilhoso conto, pra mim, fez poesia com os excluídos, um subempregado vê dois menores de ruas transando numa estação de trem, a principio pra um ser humano da classe media “normal” a imagem q vc descreve seria degradante, mas pro subempregado (no caso eu vendo com os olhos do seu personagem) é poesia a “degradação humana”.

Ler seu conto foi um espelho do Juan Gutiérrez e de mim mesmo.

Li num susto, meu estilo de leitura.

Sorte na subida

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.