Lucimar queria ser homem

As bichinhas estavam agitadíssimas. O frenesi era geral e todas em vão tentavam convencer Lucimar que ela era homem e muito homem por sinal.

Valusca. Voluptuosa e voraz, com quase dois metros de pura simpatia ficou chocadíssima com o dilema da amiga. Criatura do céu, este penduricalho no meio das tuas pernas não significa nada pra você? Interrogou.

Mesmo com provas cabais de sua virilidade, Lucimar apresentava argumentos engendrados para justificar seu conflito. Vejam meninas. Eu tenho um baby no meio das pernas, que modéstia parte é bem crescidinho e até uso ele com aqueles clientes mais ousados quem vêm em busca de diversão. Mas o que me deixa em parafusos é conviver com esse balangandã ali e querer ser mulher todos os dias. Eu sou mulher, sei disso, mas quando me deparo com esta coisa, faz um nó nesta cabecinha sensível. Entendem? Portanto decidi. Vou deixar de ser mulher, linda e poderosa e viver como um macho, primitivo e trepador. Por isso sairei desta vida bandida e viverei como um homem e assim vou me acostumando com a situação e quando der por mim, acordarei homem e serei homem para todo o sempre.

Bianca, a mais siliconada e fogosa da praça, com seu trejeito serelepe e extrovertido. Com seus um metro e sessenta e cinco de altura, corpo torneado e visivelmente feminino, um rostinho de princesa e dois peitos durinhos e redondos, entra no meio da conversa sem pedir licença para dar sua opinião. Meninas. Meninas. Eu quero falar. Eu posso falar? Eu vou falar! Estufou os peitos artificiais e indagou. Lucimar, eu entendo perfeitamente teu dilema. É difícil conciliar uma coisa com a outra, mas tudo está dentro da tua cabecinha. Embora, assim como todas nós, tempos um empecilho enorme no meio das pernas, não é isto coisa primordial para mudar toda a sua conduta lapidada ao longo de sua vida. Vou explicar melhor. Mudar as coisas de forma abrupta só vai piorar a situação. Isso vai virar uma bola de neve. Uma crise de identidade. Entende. Por Deus, não quero que a amiga tome o caminho inverso e não suporte mais o peso da dúvida. Lembra o que aconteceu com Suzinha... Antes mesmo de terminar a frase, Valusca se intromete na conversa. Por amor ao nosso pai, Bianca, vira esta boca para lá, bicha! Aquela outra, que Deus a tenha, pulou daquele prédio porque estava subjugada por forças maiores. A gente sabe que ela tinha as mesmas dúvidas de Lucimar, mas um dia lá no terreiro de dona Iná descobrimos que havia um exu dos brabos acompanhando nossa amiga. Era dívida passada. Por favor, uma coisa nada tem a ver com a outra. Vira esta boca pra lá. Repetiu.

Nisto. Num relapso de consciência, Lucimar cai num choro premeditado. Arquitetado. Abraça todas as suas amigas e confirma. Vou deixar esta vida. Ao menos uma vez preciso ser homem e para que assim seja tenho que viver como tal. Já está tudo planejado. Um bofe amigo meu, um daqueles que se esbaldava com meu bebê, conseguiu um emprego lá no porto. Vou ser estivador e não tem mais volta. Abraçadas e ainda chorando se despediram e desejaram boa sorte. Vai amiga. Mais vale quebrar a cara ante a angústia de não tentar. Espero que isso não aconteça. Se precisar estaremos todas aqui para se te reerguer. Disse Valusca emocionada. E lá se foi Lucimar para sua nova vida. As bichinhas voltaram para suas rotinas.

Meses depois o retorno. Com os cabelos esvoaçantes Lucimar vem em direção às amigas. O reencontro. Emocionante. Estava radiante. Vestido colado. Peitos afunilados. Pele macia. Cinturinha fina. Valusca boquiaberta não acreditava no que vira. Chegou Bianca. Sem fôlego. Um abraço demorado. Lágrimas e risos. Perguntas e perguntas. Estavam afoitas. E queriam saber tudo. Antes que perguntassem o óbvio veio a revelação. Eu sou mulher. Eu sou mulher. Agora sou Lucimara. Mulher de verdade. Credo. Que encanto. Ofuscou o brilho de qualquer mulherzinha. Replicou Valusca. E aquilo? Como faz para não sentir? Perguntou numa curiosidade atroz. É coisa do passado. Respondeu com tanta ternura que a pergunta não perturbou o espírito. Dê a sua mão. E assim fez Valusca com discrição. Massageou de leve a coisa e disse estupefata. Meu Deus! Não acredito! Isso deve ter custado uma fortuna. Não se conteve. Passou de novo. Com a curiosidade atiçada, Bianca também queria passar a mão na coisa. Lucimara consentiu. E passou mais de uma vez. Ficou de pau duro. Desculpa. Disse Bianca ruborizada tentando amenizar o embaraço. É força do instinto. Mas que bela xana te colocaram aí, heim? Disse ela sem parcimônia. Fiz isto no melhor cirurgião. Pitangui que me perdoe. Foi na Europa. Um especialista em troca de sexos. Tirou o pinto fora e abriu o buraco. E deixou apertadinho. Do jeito que os homens gostam. Com que grana? Perguntou Valusca. Pelo que sabemos um salário de estivador não paga nem a visita. Lucimara completou sorrindo. Eu conheci um gringo lá no porto. Milionário. Estava eu de quatro limpando o casco de um navio quando ele se aproximou. Pago mil nesta bundinha gostosa. Falou em um português capenga. Reconheço que minha bunda era apetitosa. Sem titubear o levei para o convés e ali fizemos amor. Já estava subindo pelas paredes. Foi lindo. Ele jurou amor eterno. Então ele me levou nos melhores cirurgiões. Me tornearam na faca. E agora sou mulher. Linda e poderosa. Um sonho. Adeus meninas. Vou indo, pois meu amado me espera. As bichinhas se despediram e nunca mais viram Lucimar. Lucimara.

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.