Viuvinha recatada

Antes do entardecer seguia para o cemitério a viuvinha. O mesmo ritual. Todos os dias. Esta se entregou completamente. Diziam os mais conhecidos. Foi ele o primeiro namorado. O primeiro marido. Saiu de casa com apenas dezesseis anos para se entregar aos enlaces do casamento. Tão inocente. Tão branquinha. Nunca se ouviu uma vírgula que ferisse a dignidade da moça. Sempre alegre. Sorridente. Simpática. Depois que o marido partiu. Tudo nela esmaeceu. O negro cobriu o espírito da jovem. Por dez anos ela conviveu com Jorginho, seu marido. Ele morreu de um súbito que até hoje não há consenso. Foi veneno. Só pode. Dizia a mãe do falecido. Na ocasião não se podia levar ao pé da letra as considerações da sogra. Sogra é sogra. Mãe é mãe. A viúva não dera nenhuma pista para tais acusações. Quem dera. Uma santa. Tão dedicada que tratava o marido feito um filho. O seu pequeno. Mimado que só. Um dia alguns hematomas apareceram no corpo da moça. Caí quando lavava o banheiro. Contornou. De certo foi isto mesmo. Pensaram. Ela esfrega tanto àquela casa que mal tem um tempinho para si. Sempre doce tinha sempre um motivo para não ir à casa dos parentes. Esporádica eram suas visitas. Até mesmo na casa dos pais. Jorginho era diferente. Amiúde estava recebendo os mimos da mamãe. Das irmãs. E convidava todos para uma festinha rápida de fim de semana em sua casa. O serviço mais pesado sobrava para sua mulher. Cozinhar. Limpar. Servir. E ela fazia tudo com tanto esmero. Mal sobrava tempo para colocar a conversa em dia. Contornada por seus trajes domésticos era impossível notar seu belo corpo de mulher feita. Por mais que quisesse, Jorginho a proibiria completamente. No fim da tarde de domingo ela se estirava no sofá. Fadigada. Não era fácil alimentar uma horda de comilões e beberrões todo fim de semana. E foi justamente num domingo que Jorginho partiu desta para uma pior. O dia todo não estava se sentido bem. Tomou umas geladas para relaxar. Talvez fosse o calor. Pensava. Mas homens não se preocupam muito com essas coisas. Quando foi se deitar sentiu uma leve tontura. Nada falou para não alarmar. Deveras ser realmente do calor e da cerveja. Logo em seguida Ritinha, sua esposa, deitou ao seu lado. De camisola insinuante. Sem calcinha. Acariciou o marido e esperou o retorno. Ele não contribuiu. De leve roçou os dedos nos seios dela. E só. Realmente não estava bem. Doutras vezes já havia comparecido e repetido. Era insaciável. Quando amanheceu ele estava imóvel. Sereno. Ritinha achou um tanto estranho. Geralmente ele acorda primeiro. A procura. E os dois começam o dia fazendo amor. Pôs ela a mão na testa de Jorginho. Levou um susto. Estava gelada. Não sentiu a respiração. Num tormento, temendo o pior, tateou todo o corpo. Não teve mais dúvidas. Estava morto.

O funeral fora módico. A família e alguns poucos conhecidos velaram o defunto. Ritinha se mostrou forte. Poucas vezes chorou. Dos momentos que de seus olhos caíra algumas lágrimas, de longe, a sogra retrucava. Pura encenação. Ela não o amava e coração de mãe não se engana com essas coisas. Ingrata. Desde então a viúva voltava ao cemitério todo fim de tarde. Era sagrado. E ela fazia isto com total devoção. Contornava todos os jazigos e parava em frente ao do marido. Aguardava um momento e logo, entre as sepulturas, contemplava o rosto de Marcão. O coveiro. Um negro alto e forte. Chegara de mansinho e abraçava Ritinha com força, mas muito delicado. Sem parcimônia ela tirava o vestido negro e fúnebre. Mostrando suas formas delineadas e roupas íntimas de uma brancura impecável. Libertava os cabelos. Deitava no túmulo do marido para ali ser violada por Marcão. Todos os dias. E aquela era uma forma de se vingar do canalha que tirou dez anos de sua vida. E para seu deleite. Ela matou e depois traía o falecido.

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.