No fim da tarde de sábado o santuário religioso estava um brinco. Tudo na mais perfeita ordem. Os santos postos em fila indiana se olhavam de esguelha. A alvura do recinto transparecia a calma. A ternura. O sangue de Cristo fervilhava numa taça de prata. Enquanto o pão ázimo, tão fino quanto um presunto da Sadia, estalava numa tigela de bronze. A cera derretida pelo fogo brando dos pavios escorria pelos castiçais feita lava incandescente. Dentro de uma batina negra e fúnebre, ornada com um dourado de esquife, estava padre Onofre, de corpo cansado e esquivo devido as orações diárias num cubículo ao lado da sacristia. Tudo pronto para a cerimônia. Toalhas e cortinas brancas. Luz em resistência. Ventiladores ligados devido ao calor infernal. Ave Maria de fundo para completar o enredo.
As beatas alcoviteiras chegavam mais cedo para se instalarem nos primeiros bancos. Molhavam as pontas dos dedos na água benta e faziam no peito o sinal da santa trindade. Acomodavam-se. Cochichavam alguma coisa da vida alheia e logo, com as rótulas no chão, debulhavam seus rosários resfolegando com sôfrego as surradas orações para se redimirem dos impertinentes pecados.
A igreja encheu. Todo o tipo de gente se acotovelava entre as fileiras de bancos rústicos. Feitos de alguma madeira de lei. Mouros e cristãos lado a lado. Contemplando o mesmo culto. O murmúrio era inevitável. Os mais atentos saciavam seus desejos secretos pousando os olhos nas curvas perfeitas das sedutoras Madalenas mais à frente. Uns se excitavam. Outros se estrebuchavam. Todos numa reservada obstinação só queriam ouvir e ruminar as santas palavras de salvação. Lá fora. Onde o pecado é voraz. O sino tilintava. Exatamente sete ecos do badalo. E no sétimo dia da semana começava a celebração do sacramento da Eucaristia. Primeiro o silêncio. Depois um coral de vozes descompassadas de ninfetinhas e coroinhas propensos às orgias carnais arranhava num canto mais afastado um cântico tão doce quanto açúcar refinado. De um lado a outro balançavam as cabeças em intervalos alternados que hipnotizava toda a turba. O relaxado populacho seguia timidamente o ritmo com o missal nas mãos. Enquanto os mais assíduos numa avidez de cordas vocais e pupilas dilatadas acompanhavam cada nota num divino entusiasmo. Logo que o povaréu se distraiu naquele levanta e senta e senta e levanta surgiu de uma portinhola estreita o padre Onofre. Chefe maior da casa paroquial. Algumas carolas papa-missas mais espirituosas regozijavam-se e diziam. Depois de Onofre só Deus.
Naquele sábado. Véspera de finados. Numa ocasião mais que especial. Padre Onofre, um orador de extrema veemência e de um conhecimento dogmático exemplar, numa oblação premeditada enaltecia em particular a alma daqueles que partiram desta para uma pior por vontade própria. Quem tira a vida não é fruto ímprobo. Redimir-se perante a graça divina é um ato de coragem. Dizia ele.
Os espectadores. Formados pela massa de gente humilde com o intelecto em fase de prostração. Não entendiam patavinas do que Onofre preconizava. Todos balançavam a cabeça num sinal de concordância. E continuavam emergidos naqueles sentimentos que os distraíam totalmente.
No fim da missa a tradicional lenga-lenga de abraços e apertos de mãos unia os fiéis tão distantes deles mesmos. No céu da boca o ázimo dissolvia agonizante e morria. Nos castiçais, saturados com o peso da cera, os pavios se apagavam um a um. Lá fora as mesmas beatas cochichavam e num salivar constante escrachavam os detalhes mais íntimos dos viventes que ali se encontravam.
Padre Onofre. Homem hospitaleiro e de boa índole acompanhou até a calçada o último cordeiro. Examinou a noite. Contemplou o vento gélido que lhe acariciava a face. Vão com Deus meus irmãos. Despediu-se de todos e entrou novamente. Fecharam-se as portas.
No meio do mausoléu. Fez o sinal da cruz em respeito ao Cristo. Filho de Deus. Duas vezes traído. Duas vezes condenado. Duas vezes morto. Pregado em uma parede. Pingando dor de suas chagas. Os olhos tenros e sem maldades daquele homem seminu causavam um sofrimento profundo em Onofre. Sentiu vergonha. O desprezo aterrador da culpa. Sentiu-se o pior dos assassinos e rogou-lhe o perdão. Com os olhos marejados se ajoelhou. Perdoe-me Senhor. Neste mísero ato que me queima o espírito, desejo redimir toda a humanidade. Dou-te minha alma para lhe servir com mais liberdade. Nisto. Um tiro seco e estilhaçado de um calibre trinta e dois rasgou o silêncio da casa paroquial. O sangue quente e puro de Onofre escorreu entre os bancos e parou aos pés de Santo Antônio.
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