Numa tarde de sábado. Sentada na marquise em um terminal de ônibus. Olhar distante. Apático. Moribundo. Ela estava absorta em pensamentos. Displicente. Não acompanhava a valsa daqueles que por ali trafegavam. Com passos cadenciados. Ela tinha no semblante o tédio de uma vida enjoadiça. Amofinada. Sofrida. Arruinada. Nenhuma saudação. Um sinal com a cabeça. Nem mesmo um franzir de testa. Nada. Estava petrificada. Devera ela também odiar essas convenções inúteis. Simbólicas. Melindrosas. Bastara o trincar dos dentes. O minguar severo da fome que devora. O ácido que multiplica e sobe à garganta. O resto é puro modismo. Com a pele impregnada de fuligens das descargas ela tinha um aspecto assustador. Horroroso. Nefasto. A casca mundana do abandono. Roupas gordurosas. Imundas. Todo o tipo de sujeiras em baixo das unhas. Cabelos ensebados. Maculados. Quebradiços. Sem vida. No olhar a doçura perdida. Esquecida. Trancafiada num jazigo úmido. A voz da louca também fora amordaçada. Dissipada aos poucos. Até perder o timbre. Só restou a humilhação. O assombro. O espírito preso em uma couraça mórbida. Dentre as provações a pior. Ao ferro e fogo. Cobradas eternamente. Ela fazia mímicas com as mãos. Involuntárias. Compassadas. O aquecimento para o embate. Numa luta contra si mesma. O animal enjaulado com a ferocidade atiçada. Pronta para a arena. O maior espetáculo. A imbecilidade bestial. Vinham os sussurros. As vozes que ela ouvia. Esquizofrênica. Atordoada gesticulava com mais força. Obstinada. Intimidou o inimigo invisível. Cruel. Com o ódio mais implacável se levantou a louca. Pessoas passavam com seus cardigãs. Perfumadas. Ela estava sozinha em seu mundo de tormentos. Aterrador. Gladiou-se com seus fantasmas. Numa luta atroz. Sem precedentes. Quisera ela a presença dos anjos. Puros. Iluminados. Mas ao seu lado somente os endividados. Loucos e mesquinhos. Devedores da retaguarda. Sentou-se. Nos olhos ainda o vazio. Voltou ao estado de outrora. Letárgico. Distante. Consumida por pensamentos fragmentados. Estilhaçados. Ônibus passavam. Iam. Voltavam. Lotações de almas penadas. Serpentes do asfalto. A louca os seguia com os gestos. E voltava a sua inércia. Inconsciente. Num momento balbuciava com seus carrascos. Na face o reflexo do delírio. Mesmo com sua couraça espessa sentia ela mais que outros. Estes com a pele macia. Nervos brandos. Olhares tenros. Morriam todos os dias em seus esquifes. Um círculo vicioso. Nada adiantava. O que a louca sentia não era o peso da renúncia. Era o da culpa. Do remorso. Do julgamento antecipado. Embora aparentasse boa saúde, vermes lhe corroíam a alma. A louca estava desvalida. Aturdida. Condenada. Contaminara os fluídos nas aventuras insanas. Num ato se levanta novamente da marquise. Replica baixinho. Sussurra. E corre desvairada entre a multidão. Perturba-se com as vozes. Tapa os ouvidos para não escutar. Uma tortura psicológica que não cessa. No desespero tira toda a roupa. Despida. Corre. Mais e mais. Sufocada. No corpo as marcas do desleixo. Saturado com a sujeira. Mesmo assim homens a olham com desejo. Vontades mundanas. Pervertidas. Pornográficas. Sórdidas. E ela corre sem parar. Frenética. Nua. Nua. Despojada de alguns pesos. Entornada por outros. Aniquilada pela loucura. O desvario. De repente o frear brusco. Pessoas desatinadas. O ressoar da buzina. O solavanco. Curiosos nas janelas. Passageiros apreensivos. No chão a mulher estrebuchando. Esmagada por um ônibus. Findou o tormento da louca do terminal.
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