Concurso de gordinhas

Tudo começou no rádio local. Uma das ouvintes, certamente com seus quilinhos a mais, ligou indagando o porquê de não haver concursos para exaltar a beleza das gordinhas. Elas precisam de mais espaço na mídia, completou a misteriosa ouvinte. Ante a interrogação que pairou no ar, teve uma ideia o locutor. E lançou o desafio que viera ser o assunto do momento na pequena cidade. Um evento cultural desta magnitude, além de nos render bom dinheiro com patrocínios e incentivos, daremos bons exemplos para toda a sociedade preconceituosa. Claro que naquele momento tão pouco se interessavam pelo bom exemplo, porém foi o argumento mais sensato para encobrir os verdadeiros interesses. Pura falácia. Noutro dia começaram as preparações para o concurso de peso. Primeiro a captação de recursos. Formaram um comitê para tal. No fim da tarde a delegação se reuniu para contar a arrecadação. Embora juntassem dinheiro suficiente para o espetáculo, franziram a testa em protesto à sovinice dos empresários que de muito mal grado, colaboraram com alguns tostões. Estes glutões estão cada vez mais ricos e mesquinhos. Replicou o idealizador da solenidade.

No dia seguinte, estampada na capa do jornal local, a manchete exaltava a importância de tal concurso. Gordinhas da cidade e de toda a redondeza faziam filas para se inscreverem. Fizeram uma pré-seleção. De trinta cheinhas foram selecionadas cinco. Uma mais simpática que a outra. Se há algo que a gordinha tem em excesso é a simpatia. Entre outras coisas, claro. Mas a simpatia impera. Tudo pronto para a festa. O ginásio local encheu e todos se acotovelavam entre as escadarias para ver mais de perto as beldades. O preço do ingresso foi simplório. Um quilo de alimento não perecível. Era óbvio que não fazia nenhuma alusão ao repertório do evento, porém, alguns acharam insensato. De resto, estava muito bom e organizado. Subiu no palco improvisado o locutor e idealizador do concurso. E com sua voz timbrada acalmou a balbúrdia. Agradeceu o público presente e desejou boa sorte às concorrentes. Embora não fosse jogo de futebol, fez questão de reservar um minuto de silêncio ao bom vigário que falecera dias antes. Um anjo que subiu ao céu, disse em voz cadenciada. Após a cerimônia entonou ainda mais sua voz imponente para assim dar início ao tão esperado concurso de gordinhas.

Deste lado, fazendo um sinal de saudação, apresentou os jurados. Todos rechonchudos. Nada mais justo que os juízes fossem também fofinhos para que não houvesse críticas. Afinal, a festa tinha caráter educativo e nada mais. O público aplaudiu.

Depois das palmadas ritmadas, o locutor, já olhando no relógio, anunciou a entrada da primeira concorrente, para o júbilo dos espectadores.

Senhoras e senhores, nossa primeira fofinha é Anelize. Um metro e sessenta, pesando cento e vinte quilinhos de pura simpatia. Lábios carnudos e olhos verdes. Linda. Linda. Tem vinte e cinco aninhos e para a alegria dos solteirões aí do fundão, ela também procura sua alma gêmea. Quem gostou aplauda, por favor. Aplausos, gritos e assovios ecoaram por todo o salão.

Logo em seguida entrou a segunda. Nicole é o nome dela, completou o narrador. Um metro e setenta. Rostinho de princesa, no auge de seus vinte anos e pesando cento e vinte e cinco de gostosura. Ela passou, deu uma piscadela para os viventes e se pôs ao lado de Anelize.

Vem aí Fernandinha. A terceira concorrente. Olhos azuis. Pegada forte. Loira e inteligente. Fez questão de salientar este detalhe. Dezenove aninhos. Peralta e atrevida. Com suas formas esbeltas ela passa devagar e insinuante. Cento e nove vírgula três, nem um a menos nem um a mais. Um e sessenta e cinco. Um espetáculo!

Em seguida Gabriela. Gabizinha para os mais íntimos. Dentre as concorrentes a mais magrinha. Um e sessenta e oito com seus oitenta e cinco quilinhos. Linda. Simpática e solteira. Cinturinha torneada. Pernas grossas e firmes. Olhos verdes. Cabelos cor de mel. Deu uma voltinha e sorriu para o público. Simpaticíssima.

A quinta e última é mais experiente. Trinta e quatro anos. Olhos castanhos. Um e setenta e um. Cento e trinta e cinco. Cheia de amor para dar. Bruna é o nome dela. No romance está disposta a trocar experiências. Não tem filhos. Nunca casou. Ela também está à procura do cupido para flechar teu coração. E lá se vai Bruninha, tentando demostrar alguma ginga para animar o júri.

Ante o fim da apresentação de peso, contemplando o nervosismo das meninas, sai dos jurados a carta contendo o nome da vencedora. Vale ressaltar que, apesar de ser mero divertimento, tal concurso continha mensagem educativa. Mensagem esta que viria amenizar o preconceito contra aqueles que estavam um pouco acima do peso. A brincadeira em questão serviria de exemplo para avivar o sentimento de respeito com o próximo, principalmente os obesos. Enfim, entre o suspense e a aflição, finalmente a carta foi aberta e para surpresa do locutor e de toda a plateia ali presente, a vencedora foi Gabriela, justamente a mais magrinha...

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.