Falo em riste

A proprietária de uma floricultura contrata os serviços de um desenhista gráfico para remodelar sua logomarca. Dona Jandira era mulher inteligente e lacônica. Sabia se expressar muito bem e argumentava com elegância. Sempre contida tinha um ar de intransigência. Aparentava uns cinquenta anos. Nos cabelos a marca de tinta era visível. Apesar da idade e da pele carcomida pelo tempo, se mantivera conservada em alguns aspectos.

Não quis impor muitas mudanças. Apenas o necessário para que a logomarca ficasse mais visível. Embora se mostrasse aberta às sugestões, era impassível quanto ao que já tinha definido. O desenhista não se conteve. Sempre voltado ao novo, sugeriu uma mudança radical. Dona Jandira se mostrou resoluta. Havia um carinho especial por aquele formato da logomarca.

- O amarelo está descartado. Não quero nenhum resquício desta cor. Deixa o verde. Disse ela.

- Com o fundo lilás o verde ficará esmaecido, sem vida, pois é uma cor fúnebre e não combina com o vívido das flores. Já com o amarelo tudo ficará mais vibrante. Contornou o desenhista.

- Não quero o amarelo. Põe o verde e deixa o lilás. As tuas objeções não me agradam. Portanto siga minhas instruções para que possamos terminar logo o trabalho.

O desenhista não se conformou. Frente a insipidez do projeto, ele tinha certeza que daria mais vida àquela arte se não fosse o demasiado apego que Jandira demonstrava. Ante as reprovações, numa última tentativa de amenizar o impasse, teve ele outra réplica.

- De maneira alguma quero menosprezar sua logomarca. E Continuou. Tenho um grande respeito pela senhora e espero que não leve minhas considerações para o lado da maldade. Porém, este logotipo é simplório demais para nossa época e ainda se parece com um falo em riste.

Ela o olhou com ameaça. O fulminou com os olhos. Ficou profundamente abalada. Como se aquelas palavras a libertasse de um tormento emocional. Deu um longo suspiro. Faltou-lhe o ar. Foi até o bebedouro e engoliu três copos de água. Voltou. Pálida e rude. Sem titubear falou ao rapaz.

- Poderia eu te processar por tamanha audácia. Não tenho mais idade pra ouvir de um moleque este despautério. Foste o primeiro a fazer tal associação. És um pervertido. Um perturbado emocionalmente que vê falos em todos os lugares. Vê novamente. O que parece um falo para ti, são caules para mim. Caules! Não vês? Caules!

Sem saber o que dizer. Numa situação desconfortável. Embaraçosa. O desenhista apenas pediu desculpas, pois não havia intenção de deixá-la naquele estado. Foi apenas uma infeliz opinião que retirou imediatamente.

Dona Jandira encerrou o trabalho e pediu para que ele retornasse no dia seguinte para acertar a conta. O dispensou sem parcimônia e fez questão de salientar que seria contratado outro desenhista. Que falasse menos e trabalhasse mais. Ela o acompanhou até a porta para ter certeza que não voltaria. Fechou e passou a chave. Duas voltas. Deu um passo à frente e retornou para ter certeza que a porta estava realmente fechada. Trancou as janelas. Todas. Abaixou os vidros. Esticou as cortinas. Contornou todos os cômodos para certificar se tudo estava trancado. Voltou ao quarto e abriu o guarda-roupa. Retirou de um fundo falso uma pequena caixa de camurça ornada com ouro e prata. Olhou com serenidade para o retrato do falecido marido. Ela contemplou as insígnias do Marechal que tinha no semblante um ar de nostalgia. Abriu delicadamente a caixa estreita e retirou um falo empalhado. Rígido. Em riste. Olhou novamente para o retrato do marido e balbuciou.

- Descobriram, meu amor. Descobriram. Eu quis fazer uma homenagem ao seu falo, sempre e riste e que tanto me fizera feliz e realizada. Mas agora...

Dona Jandira massageava friamente o órgão decapitado e repetia num lamento profundo e cadencioso.

- Descobriram. Descobriram...

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.