A gordinha queria ser desejada

Ela passava e ninguém notava. Perambulava de um lado a outro. Ruas, vielas e esquinas a rebolar suas ancas rechonchudas. Ninguém. Eles viravam a face numa sordidez hedionda. Crianças. Jovens. Velhos decrépitos. Magricelas desenxabidas. Nada. Nascia um conflito de rejeição. Diabos. Pensava ela. A culpa é da mídia com seus conceitos de beleza. Maldita. Antigamente éramos musas de Botero. Duchamp e tantos outros artistas renomados. Mas agora adulam ossos. Corpos desidratados. Anoréxicos. O mundo está perdido mesmo. Nasci na época errada. Findou os argumentos. Nisto a gordinha teve uma ideia. Mas antes um lanchinho para relaxar. Ninguém é de ferro. A fome é um tigre voraz. Insaciável. Da geladeira puxou um frango que sobrou do almoço. Aliás, já havia preparado de mais justamente para degustar mais tarde. Fui sensata. Pensou. Puxou a farofa. Um tantinho de maionese. Meia tigela. Se deixar para depois estraga. O feijão. O arroz. Azeitonas. Azeite virgem para banhar a salada. Resumindo. Um manjar dos deuses. Embora estivesse com um pouco de fastio por causa do calor. Fora as assaduras que incomodavam por demais. Conseguiu comer tudo e ainda lamber os dedos. Enfim. O que não mata engorda. E o caso estava mais para a segunda alternativa. Ainda que a gula fosse um pecado, havia outros mais atrozes para se preocupar. Em meio a tanta maldade sou uma santa. Pensava. Enxugou a última gota de molho com um pedaço de frango e pronto. Estava saciada. Juntou tudo o jogou na pia que reluzia no inox a alvura do local. Foi até o banheiro. Um banho refrescante para tirar o excesso de suor. Se deixar vira graxa. Olhou para a pele. Tão macia e hidratada. Não se conteve. Com os dedos em forma de pinça mediu o adiposo. Não gostou do resultado. Fez cara feia diante o espelho. Mas logo se conciliou consigo mesma. Que se danem os outros. No quarto se viu por inteira. Nua. Com os pelos pubianos bem aparados. Um tapinha nos glúteos para descontrair. Que vislumbre! Exclamou. Pensou. Que deslumbre! Corrigiu-se. Sou gostosa mesmo. Tenho carne. Como podem adular ossos? Interrogou. Olhou-se mais de perto. Ergueu os peitos. Que logo voltaram à posição inicial. Assentando sutilmente nas dobrinhas. Por fim a ideia que veio à tona. Passou escova nos cabelos. Hoje eles vão me notar. Assoviar. Desejar. É hoje que homens vão me adorar. Sou deusa. Eu posso. Afrodite que me perdoe. Começou a produção. Com requinte. De certo modo. Cruel. Planejado nos mínimos detalhes. Calcinha tipo fio dental. Enterrada no âmago. Dividindo milimetricamente as vulvas. A valva vienense. O estopim dos desejos carnais. Por cima um vestido esvoaçante à Marilyn Monroe. Branco. Delineando ainda mais as formas avantajadas. O melhor perfume. Esmalte craquelê para combinar com o enredo. Batom vibrante. Sombra nos olhos. Todos os aparatos que realçam ainda mais a beleza feminina. A flecha certeira direto no calcanhar de Aquiles. Homens. Meros machos procriadores. O último retoque e pronto. A gordinha estava no cio. Uma bolsa para combinar com o vestido. Saiu. Desceu a ladeira e logo nos primeiros metros o sinal de cansaço. Não desistiu. Ante as primeiras gotas de suor. Parou e puxou um lenço. Andou. Andou. Andou. E nada. Nenhum olhar furtivo. De esguelha. Desejoso. Nada. Meros fantoches midiáticos. Convenceu-se. Partiu para o lugar onde todas eram notadas. Sem excessão. Todas. Encasquetou. Mais umas quadras e lá estava. A construção. Imponente. Bela. Altiva. Pequenos homens e homens pequenos erguendo o magnífico. Trabalhadores braçais. Primitivos e sedutores. Corpos torneados. Suados. Sedentos. Passou para o outro lado da rua. Não quis se expor. Tudo tem limites. O pudor é sagrado. É o fogo que arde. E queima em silêncio. Passou em frente. Olhou os trabalhadores com lascívia. E nada. Nem mesmo o servente. O mais ínfimo cargo. Devera o mais embrutecido. Nem um tímido ressoar de lábios. Nada. Voltou. Sentou num banco em frente a construção. Dezenas de homens aturdidos pelo cheiro do sexo. Puxou o espelho. Maquiagem retocada. Sou linda. Contornou. Sorriu e olhou para frente. Feito águia. Olhar estreito. A espreita de sua presa. Mais dez minutos ali. Derretendo-se. E nada. Diabos. Não me viram? De certo não. Convenceu-se. Tenho que ser mais atrevida. Mundana. Despudorada. Atravessou a rua. Parou a poucos metros dos proletários. Olhou para cima. Uma construção majestosa. Realmente. Obras primas da humanidade. Deixou cair o lenço. Ao abaixar-se. O grito. Do décimo andar o desespero. Desceram todos. Sem excessão. Motoristas paravam. Transeuntes se amontoavam. Num piscar de olhos a gordinha se vê rodeada de homens. Súditos. Abanando-a. massageando-a. Olhos vidrados. Vibrantes. Maculados. Um sonho. Num último suspiro vê somente os vultos. Quase sem fôlego diz baixinho. Fui notada. Homens. Homens. Ordinários. Um só bastava para me fazer feliz. Agoniza e morre. Ao seu lado o tijolo que caiu do décimo andar e lhe tirou a vida.

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.