Jacira

O telefonema

No telefone a voz trêmula e cadenciada sentencia: Ela morreu!
Numa tarde de quinta feira o funeral de Jacira foi modesto, poucas pessoas se dispuseram a acompanhar o defunto.

O começo

Paulão conheceu Jacira numa dessas festas malucas das noites criciumenses. Trocaram olhares e no balcão do bar ele ofereceu um conhaque. Ela aceitou, os dois brindaram e dançaram adoidados a noite toda. No dia seguinte Paulão acorda com uma dor de cabeça dos diabos e leva um susto ao ver aquela mulher nua ao seu lado. Jacira esboça um sorriso e também se levanta procurando suas roupas.

O romance

Dias depois os dois se encontravam regularmente, bebiam, transavam e depois se drogavam. Paulão dizia que ela o fazia feliz e que os dois viveriam juntos para sempre.
Marquinhos, o irmão mais novo, tentava enfiar um pouco de juízo na cabeça do irmão, mas era sem efeitos, Paulão não queria saber de meias conversas e mandava os outros cuidarem do próprio rabo.

A separação

O calor daquele louco amor começou a cessar aos poucos, e os fervorosos encontros se resumiam em apenas uma transa rápida nos fins de semana. Foi num desses encontros, ainda alucinada com os efeitos da maconha que Jacira confessou ao namorado que ele já não era mais o único homem de sua vida.

O fim

Paulão ficou possesso. Atordoado e no calor da loucura deu umas bifas na face de Jacira e mandou ela embora. Mas antes quis saber quem era o desgraçado com quem ela estava saindo. Chorando, Jacira dá um soco na mesa e diz que ele só iria saber no dia que ela morresse. Pegou sua bolsa e saiu sem rumo porta afora.

O consolo

Quando Marquinhos ficou sabendo da noticia, disse ao irmão que foi a melhor coisa que ele fez em toda sua vida, e repetiu, foi sensato. Classificou Jacira com os mais sórdidos palavrões e dizia ao irmão que procurasse a igreja e constituísse uma família.

O desespero

Numa manhã de domingo um bilhete vermelho passou por baixo da porta do modesto apartamento de Paulão. Era de Jacira com as únicas palavras: Estamos com AIDS. Paulão pôs a mão na cabeça e não acreditou no que leu.

A descoberta


Horas depois o telefone toca. Era Marquinhos sentenciando suas últimas palavras: Ela morreu! Depois de dar um tiro na cabeça de Jacira, Marquinhos dá outro dentro da própria boca, deixando em casa a mulher e duas filhas pequenas.

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.