O poço

Existe o poço e o fundo do poço. Este ano comecei com o pé direito. No poço. Aqui entre nós, pessoas simples e trabalhadoras, mais simples que trabalhadoras, o poço é apenas uma metáfora. E metaforicamente falando é o mesmo que dizer: fodeu mesmo. Mas vou usar o poço. É menos torpe. Não que isso me implique uma inocência exagerada. De longe, muito bem longe minha personalidade fora moldada pela alvura da inocência. Porém, isto não vem ao caso.

Há quem diga que o poço na vida de uma pessoa lhe traz boas transformações. A reforma íntima. A simplicidade. A humildade. E até mesmo os melhores méritos. E que o poço está ali desafiando os limites do infeliz atolado até a cintura. O poço, diz o mais espiritualista, é o adágio de toda evolução moral. Que mentira. É uma ilusão descabida. Veja bem. Se a vida é um vir-à-ser incessante, assim como a água do rio daquele filósofo de outrora, o que vive no poço é água parada e putrefata. Não gira. E fica ali acumulando todo o tipo de imundície. É bem verdade que água de rio também tem suas merdas, mas pelo menos não para e por esse mísero detalhe é bem melhor que estar no poço.

Outras também fazem questão de alardear que o maldito poço deixa as pessoas mais humanas. Sensíveis e ao mesmo tempo fortes. Feito uma muralha. Argumentam que as dificuldades lapidam o caráter e a perseverança. E aflora no ser a pura bondade e o respeito com os seus semelhantes. Outra mentira. De maneira alguma o poço é um poço de doutrina. Exemplo disto está minha própria pessoa. Fiquei mais rancoroso e vingativo. Na cabeça borbulhavam todos aqueles pensamentos malignos e mal feitores. Toda vez que não me escolhiam numa entrevista de emprego, logo pensava: o dia que eu tiver minha empresa vou quebrar a tua, desgraçado. Isto quando não imaginava um coquetel Molotov rasgando o céu feito meteorito para incendiar a fábrica do calhorda. Descobri que a única coisa que o poço lapida é a inutilidade. E te marca com o ferrete quente. Fervendo. O pociano é praticamente um fardo inútil para a sociedade. E vive às margens de tudo contemplando as coisas de seu poço.

O poço também me deu alternativas para encarar os desafios da vida com outros olhos. E até mesmo por outros ângulos. É claro que não eram ângulos retos. Me tornei um suicida em potencial. Todos os dias quando saia pela manhã em busca de uma razão para viver. Resumindo. Um free para se manter. As pessoas me saudavam com um bom dia, fracassado. Era uma tortura psicológica. Elas não diziam de forma deliberada, mas eu sentia o teor da palavra. Esta maldita palavra estava estampada em minha testa. Um tormento. Pensei em diversas alternativas para tirar a própria vida. Pular de um prédio seria impossível. Tinha medo de altura. Ficar em lugar fechado até perder o ar nem pensar. A claustrofobia me mataria antes. É óbvio que todo suicida precisa ficar com o mérito de sua morte. Mas eu era tão covarde que nem isso tinha coragem de fazer. Um dia estufei o peito e disse. É hoje. Fiz uma carta muito dramática para o poço, meu único companheiro e entrei na primeira farmácia para comprar uma dose letal de veneno. Quase morri quando me falaram o preço. Por Deus. Para o pociano até pra morrer fica difícil. Desisti da ideia. Então resolvi exercitar a enferrujada mania de leitura. Mania esta que o pociano entende muito bem. Horóscopo. Sorte do dia. Revistas de novelas e um caminhão de livretos de autoajuda. E muito. Muitos clássicos de rodoviária. Destes que o teor literário é impressionante. De cada cem livros se aprende em torno de oito palavras novas. Afora dúzias e dúzias de um anglicismo exacerbado. De tempos em tempos gostava de Augusto Cury. Ele te ensina ser um idiota por completo. Completíssimo. De repente você lê um livreto e tudo se transforma. Naquele dia os ânimos se exaltam. E do fundo do poço vem o prelúdio da mudança. Noutro dia a inércia é aterradora. Não adianta. O poço sempre vence.

O mais interessante nesse tipo de leitura são as formas que o autor engendra para separar o pociano de seu poço. Cinematográfico. Tipo aquelas propagandas ideológicas da igreja universal. Um sonho. Bastaria dizer eu posso e pronto. Tudo se transforma. Com uma ressalva. A igreja universal não gosta de pocianos. Ao menos que você tenha algo para oferecer. Um carro velho. Uma casa. Um cabrito. Enfim. O elo central de todo livreto é a bendita felicidade. E ela está dentro de nós e não nas coisas materiais. Nisto há um porém. Aquele carro caríssimo. Um sonho de consumo. É material. Àquela vida maravilhosa com um iate lotado de gostosas. É material. Àquela loiraça de biquinizinho na praia. É material. Tudo é material e o filho da mãe vem dizer que não devemos dar valor a isto?

Nesta mesma linha de raciocínio também dizem que devemos dar valor para as coisas pequenas. As mais ínfimas. Supondo que o autor escreve para um público que vive no poço, coisas deste tipo causam a maior confusão nos pocianos. Se devemos pensar nas coisas pequenas e dar o devido valor, entretanto, contudo, todavia, devemos pensar apenas no poço. Pois o poço é alguma coisa pequena e ínfima. Supondo também que os autores de livretos vivem dos livros que vendem. Tudo isto faz grande sentido. Sem poço não há vendas. Sem vendas o autor vai para o poço. Agora chegamos ao ponto da questão. De certa forma tudo gira em torno do interesse pessoal. E nesta cadeia alimentar existe um egoísmo avassalador.

Sem dúvidas o maior medo dos autores de livretos é a intelectualização dos pocianos. Por isso toda aquela lavagem cerebral subliminar. Eles sabem que somos preguiçosos e caímos na inércia todos os dias. Mas nem por isso deixamos de afagar o ego. As fórmulas prontas e indolores são puro placebo. E o efeito é de uma droga fajuta. Apenas um dia. E a contradição não para por aí. Oras. Se a felicidade não está no conforto material, porque eles vivem em palacetes e abarrotam a conta bancária com milhões e milhões?

Na minha condição de habitante do poço, com todo esse dinheiro eu estava rindo à toa. Imagina. Um milhão! Com um milhão eu trocaria o poço por enormes piscinas de águas mornas. Termais. Seguindo aquela máxima de que atraímos o que pensamos e que tudo está alinhado em nosso campo vibracional, com um milhão seriam atraídas um caminhão de ninfas e ninfetinhas serelepes para desfrutar comigo um banho demorado na piscina. Àquela outra máxima de que pensamentos positivos trazem coisas positivas também é puro embuste. O que traz coisas positivas é aquele um milhão na conta bancária. Dentro do poço qualquer pensamento positivo não passa de simples pensamento positivo. Não sei ao certo se isto existe. Deve ser bem raro. Uma das exceções era um cara legal, amigo meu, que vivia dentro do poço. Ele era o cúmulo dos pensamentos positivos. Era um cara legal. Morreu no poço. Falar isto para o pociano é uma hipocrisia sem tamanho. O poço é mais audacioso e voraz que qualquer pensamento positivo.

Sem contar que existe uma grande complacência entre o poço e o pociano. Com o passar do tempo se tornam inseparáveis. Um não vive sem o outro. Ou mais ou menos isto. E começa uma amizade duradoura que se deixar, arrasta por uma vida inteira. Uma daquelas simbioses que não traz lucro algum. Quando começamos confidenciar nossas lástimas aos outros, estamos num estágio perigoso. Muito perigoso. Estamos prestes a perder até mesmo a dignidade. Talvez aquele orgulho exacerbado que nos mantém vivos. Outrora quando tínhamos alguma coisa os amigos estavam sempre por perto. Na desgraça todos se vão. Na verdade existe um pormenor que não levamos ao caso. Enquanto um quer nos tirar do poço, trezentos querem nos puxar para lá. É um nivelar constante.

O pociano está fadado a viver e morrer no poço. É uma lei universal. Embora sua percepção seja enorme para as desgraças, ele apenas enxerga uma pequena fração ao seu redor. Somente o poço. Diga a ele que somos poeira no universo ele dirá que é apenas uma pedrinha no poço. Assim como o musgo que não vive sem a rocha, o pociano não vive sem o poço. Isto não é mais uma simples sina ou carma, é uma condição de vida. O sujeito ligado ao poço pelo cordão umbilical conhece muito bem este detalhe. Por isto não reluta muito para se livrar de sua origem. Algumas vezes tenta. Mas não consegue. Ele se trai a todo instante devido ao seu complexo de inferioridade.

Quando no projeto de cidadão pociano aporta a noção de uma realidade fatídica, ele tem duas opções. Ficar no poço ou sair do poço. Apesar de a vontade ser forte. A primeira opção se destaca. O pociano é rústico e queixoso. Geralmente quando não está reclamando da vida, está dormindo. E vice-versa. Ele nunca não está satisfeito com o que tem. Sempre quer mais. Sempre tem menos. Quando se consome mais do que se recebe, eis a falência. É uma lei básica. O cidadão pociano que está falido, há tempos já mandou esta regra para aquele lugar. Lugar este que não convém maldizer aqui.

Muitos acreditam que viver no poço tem lá suas vantagens. E para eles certamente que tem. Pois esses não estão no poço. Estão lá fora colhendo as tais vantagens. O pociano, apesar de não ter muito que oferecer, também é vilipendiado moralmente. Visto que a moral do pociano está no pouco que tem. E há diversas formas de surrupiar a última gota que se encontra no poço. Formas estas que não cabe a minha pessoa dar-lhes maiores detalhes. Mas vou dar uma pista. O pociano também é pacato às suas devoções. De praxe, num ritual constante vem à tona para fazer parte de alguma casa de adoração. É claro que existem as exceções. E numa dessas exceções estou eu novamente. Ser devoto é um estado de espírito. Meu estado de espírito é tão ínfimo que prefiro não tomar partido de nada. O mais interessante nesses rituais de devoção é que os pocianos vão lá justamente para se livrar de seus problemas. A vida de um pociano já é um problema. O poço é um problema. Somos do poço. Morremos no poço. Que efeito alucinógeno tem essas casas que não nos livra de nada e ainda assim estão sempre lotadas? Bom. Deve ser a musiquinha de fundo. Assim dizem alguns amigos, pois jamais estive lá. Tudo bem, só uma vez. Confesso.

Alguns poucos contemplados que dizem ter a sabedoria divina nos mostram o quanto precisamos lutar contra o poço. Uma luta ferrenha contra o inimigo invisível. Porém, são justamente esses que nunca venceram nada. E há nisto uma razão. Se o inimigo é invisível a luta se torna desigual. Um ponto para o poço. A grande maioria dos pocianos são embrutecidos e pessimistas. Nunca admitem que são eles mesmos os autores de seus próprios males. Do tipo, colhes o que plantas. Aqui se faz e aqui se paga. Dentre outras frases de efeito que dão o mesmo significado. Enfim, muita ladainha para pouca ou quase nenhuma mudança. Por outro lado existem os detentores de ideias novas e desafiadoras. E acreditam fielmente que há diversas formas de sair do maldito poço. Esboçam alguma coisa ali, alguns cálculos acolá. Sempre otimistas em suas resoluções e por fim. Morrem no poço.

Se Einstein analisasse fisicamente o poço, com toda sua genialidade, diria ele que há uma grande massa que altera o campo gravitacional e que atrai para si as massas menores. Portanto, sendo o poço o corpo de maior energia, incontestadamente alicia o pociano para seu interior. Desta forma o engole completamente e não dá alternativas de fuga. Tudo é relativo.

Embora não exista alternativa senão ficar no poço, às vezes tenho diligência ao mencionar minha condição de cidadão pociano. Sinceramente, também queremos dignidade, conforto e respeito. Claro que aquele um milhão na conta também ajudaria. Mas faço de conta que meu poço é uma grande piscina e que todas as rãs ao redor sejam as tão desejadas ninfetinhas serelepes. Para terminar esta crônica quero brindar a minha e a tua condição pociana e mísera. E dizer que o melhor da vida é sorrir e sorrir e só às vezes colocar a culpa nas coisas lá fora. Enfim. Viva ao poço. Vida longa ao poço. Droga!

0 comentários:

Postar um comentário

O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.