Minha querida Nicole

Desde crianças brincávamos juntos. Ela sempre afável tinha um carinho especial por mim. E eu nutria por ela um carinho maior ainda. Tínhamos a mesma idade. Enquanto os irmãozinhos dela jogavam futebol, eu ficava junto a ela sentado à beira do campo segurando sua frágil mãozinha. Sempre branquinha e singela precisava de constantes cuidados médicos. Às vezes morava mais no hospital do que em casa. Quando voltava era eu que repassava as lições da escola. E gostava muito de estudar com a Nicole. No fim da tarde ela espalhava seus ursinhos de pelúcia por todo quarto e ficávamos horas brincando com aquelas criaturinhas tão fofas.
Na medida em que crescíamos trocávamos os ursos por passeios na pracinha. E ela ficava cada vez mais franzina e precisava de cuidados constantes. Não dispensava a sua sombrinha rosa para não pegar sol. O mínimo já era motivo para lhe deixar de cama uma tarde inteira. Nicole sempre fora delicada e tinha uma saúde instável.
Quando ela fez treze anos trocamos pela primeira vez uma carta de amor. Era um amor singelo e ingênuo e eu tinha por ela muito apego.Não sei dizer ao certo o motivo deste apego. Talvez eu gostasse dela por ser tão singela e frágil e isto me despertou um sentimento de proteção. Depois de um tempo nossos passeios no bosque foram cessando devido ao cansaço que isso lhe causava. Os irmãos dela, bem mais velhos que nós, começaram algum tipo de marcação e não deixavam que eu ficasse com ela por mais tempo.
No aniversário de seus quinze anos ela fez questão que eu fosse o primeiro a dançar a valsa. Os olhos dela eram tão serenos que não resisti. Depois da festa trocamos o primeiro beijo e juramos amor eterno. Ela estava tão magrinha e fraca que me causou uma comoção profunda. Nicole tinha uma voz tão doce e tudo que ela falava era belo e generoso. Depois do beijo e das juras de amor fizemos planos para o futuro. Embora o nosso futuro fosse incerto, eu tinha certeza que ela mudaria muita coisa em minha vida. Éramos tão jovens, mesmo assim arcamos com uma responsabilidade imensa.
No fim da festa ela fez questão de ficar um pouco mais comigo e só foi para o quarto descansar depois das dez da noite. Os irmãos dela estavam sempre por perto nos vigiando.
Noutro dia abri a minha janela e vi uma ambulância saindo da casa de Nicole. Corri para saber o que havia acontecido e disseram que ela fora às pressas para o hospital. Ficou dois dias lá e voltou ainda mais fraca e branca. Alguns amigos se reuniram e fizeram uma visita a ela. Quando entrei no quarto ela me procurou com os olhos e me olhou com tristeza. Os ursinhos estavam todos em fila ao redor de sua cama de princesa. Era o prenúncio de uma despedida. Quando todos saíram eu fiquei mais um pouco para tentar amenizar a dor que ela sentia. Ela nada disse. Puxou uma caixinha de papelão ornada com papel picado e tirou um anel que estava escondido no fundo. Com as mãos trêmulas me entregou o objeto e disse em voz baixa que iria me amar para sempre. Eu a abracei e logo em seguida tive que sair para ela descansar. Contemplei seus lindos olhos brilhantes e me despedi. Havia naquela cena uma comoção que me tomou por completo. Como se aquela despedida fosse definitiva.
Noutro dia veio a notícia que chocou todo o bairro. Nicole morreu naquela noite. Depois do meio dia trouxeram o caixão, branquinho feito a seda, para levar o corpo dela. Com lágrimas nos olhos vi seu rostinho doce e rosado no seu velório. E levaram aquela criaturinha tão meiga que tanto me amou e que marcou a minha vida.

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O título é um tanto sugestivo e não por acaso coloca o próprio autor longe de casa, à deriva que busca um terreno seguro para ancorar. Cansado por navegar e perceber que não há mais terras seguras, um lar. O ser humano quer direitos iguais a pretexto de agredir seu próximo. Este blog está marcado e saturado por contos irreais e ao mesmo tempo povoa não só o imaginário, é o próprio real forjado nas linhas que os compõem.

Disseram-me um dia que eu deveria falar de coisas reais, de coisas normais e compor os mais belos poemas para saudar a Criação. Pobres ingênuos, ou cegos, ou mentirosos. É exatamente isso que faço, colocar nas entrelinhas o que há tempos se tornou normal e convive lado a lado com toda loucura humana. Normal é a prostituição, o esvaziamento de si mesmo para dar lugar aos instintos mais perversos. Normais são os vícios e tudo aquilo que envolve a aura libertina, desregrada e compartilhada o que leva ao fundo do poço a alma mais perturbada. O normal de hoje é a transgressão moral, queimar as tábuas e tudo que foi nos deixado através da dor e sangue. O normal de hoje são os vínculos materiais, as bolhas e tudo que pode se acumular visualmente para que possa ser mensurado, cobiçado e amado. É normal ver as posições trocadas entre homens e mulheres e não poder dizer que não é natural sem ser censurado e taxado como um canalha preconceituoso. Tudo bem, direi que é normal, mas meu pensamento continuará na canalhice pois não posso abortar preceitos que aprendi com tantas gerações. Normal é ser normal, descarado, doutrinado e condutor de uma ordem que tão pouco desconhecem.

Enquanto isto, coisas anormais se tornam ainda mais escassas. O verdadeiro amor sem interesses, sem vilipêndios semânticos, o puro e simples de estar por estar. Longe se esvai o respeito ao próximo, os contratos voluntários o caminhar sem medo. E tudo fica distante e complicado demais para entendermos, pois o que era normal está morrendo e voltando para algum lugar para quem sabe, um dia voltar com mais força.